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2021_Sociomuseologia Teoria e pratica, Org. Judite Primo & Mario Moutinho

2021

[Editores]Judite Primo, Investigadora Principal FCT – CEECIND/04717/2017, Titular da Cátedra UNESCO “Educação, Cidadania e Diversidade Cultural”. Mário Moutinho, Investigador Integrado no CeiED, Coordenador do Departamento de Museologia da ULHT

[Autores] Ana Paula Fitas (ULHT) Alana Mendonça (Remus-RJ) Alexandre Oliveira Gomes (UFPE) Camila A. Moraes Wichers (FCS/UFG) Cláudia Rose R. da Silva (Museu da Maré) Clovis Carvalho Britto (UnB) Maria Cristina Oliveira Bruno (MAE-USP) Fernando João Moreira (ESTHE) Hugues de Varine-Bohan Inês Gouveia (IEB-USP) Judite Primo (CeiED-ULHT /FCT) Juliana Maria de Siqueira (SMC-Campinas) Juliana Veiga (Remus-RJ) Leu Cruz (Museu Vivo do São Bento) Luísa Calixto (Remus-RJ) Manoela Nascimento Souza (UPF) Manuelina Maria Duarte Cândido (U. Liège) Marcele R. N. Pereira (UNIR) Maria Célia T. Moura Santos (UFBA) Maria das Graças Teixeira (MAFRO) Mario Chagas (UNIRIO) Mário Moutinho (ULHT) Mirela Araujo (Museu da Abolição) Nathalia Lardosa (Remus-RJ) Pedro Pereira Leite (ULHT) Rondelly Cavula (Remus-RJ) Vânia Brayner (ULHT)

[Paginação] Maria Helena Catarino Fonseca

[Capa] Nathália Pamio

[Ano de edição] 2021

[Edição] Edições Universitárias Lusófonas Campo Grande 376, 1700-090 Lisboa

[ISBN] 9798683520359

[DOI] https://doi.org/10.36572/csm.2021.book_3

[Contactos] Departamento de Museologia / Cátedra UNESCO “Educação, Cidadania e Diversidade Cultural” Edifício A. sala A.1.1. email: Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

Prefácio por Hugues de Varine-Bohan

Quando entrei para o ICOM em 1962, a museologia, como disciplina científica e acadêmica, não existia. As poucas horas ditas de museologia, que faziam parte dos programas de formação profissional da Escola do Louvre de Paris, focavam exclusivamente no que hoje se chama de museografia: feitio das vitrines, segurança e riscos de incêndio, por exemplo. Em três anos de estudo, nunca ouvi falar do museu enquanto instituição, dos seus valores, dos seus objetivos, dos seus métodos. O único estágio que fiz num museu foi dedicado ao inventário de um pequeno conjunto de objetos arqueológicos esquecidos nas reservas. Talvez fosse diferente noutro lugar, mas havia muito poucas formações naquilo que era simplesmente se chamava “a profissão de museal”. Os responsáveis de museus e coleções eram recrutados com base em sua qualificação em disciplinas científicas relacionadas as coleções: história da arte, história, arqueologia, etnologia, biologia, paleontologia etc.

Além disso, não existia, e ainda hoje não existe, uma “profissão” museológica: conhecemos bibliotecários e arquivistas, mas os termos de conservador, ou curador, que não são específicos do museu, referem-se apenas a uma das funções da instituição.

Foi por volta de 1970 que ouvi pela primeira vez Jan Jelinek, que se tornaria presidente do ICOM em 1971 e que era professor na Universidade de Brno (Checoslováquia, hoje República Checa), depois de ter dirigido Museu da Morávia até 1968, falar sobre a necessidade de se criar uma nova disciplina que se chamaria “museologia”. Foi assim que universidades, especialmente Brno e Leicester, no Reino Unido, começaram a inventar e ensinar a museologia. Mas certamente sem abandonar o ensino tradicional das “disciplinas básicas”, como Georges Henri Rivière as chamava. No ICOM, trabalhamos nas principais funções do museu, a conservação e a educação, mas também sobre as famílias de museus, agrupadas de acordo com a natureza de suas coleções.

Nas décadas seguintes, a museologia foi ensinada num número cada vez maior de escolas e universidades, primeiro como uma disciplina complementar dos graus tradicionais, especialmente história da arte, antropologia, arqueologia e ciências naturais, depois gradualmente mais autonomamente, com um claro desejo de consolidar as profissões do museu e do património. Os modelos usados na pedagogia eram os grandes museus do “primeiro mundo” e sobretudo os museus de arte, o Metropolitan Museum de Nova York, o British Museum e National Gallery de Londres, o Louvre de Paris, o Riksmuseum de Amesterdão… A nível internacional, a Unesco e o ICOM colaboraram na disseminação dos princípios e práticas dessa museologia, primeiro a partir da prática e, em seguida, teorizada pelos principais profissionais americanos e europeus. Os encontros e seminários internacionais organizados nas grandes regiões do mundo “em vias de desenvolvimento”, América Latina, África, Próximo e Médio Oriente, Sul da Ásia ou Extremo Oriente, foram programados e conduzidos por especialistas escolhidos nos museus dos países. industrializados. Era claro que o objetivo era alcançar em todos os lugares uma “qualidade” da prática dos profissionais de museu o mais homogênea possível de acordo com os modelos euro-estados-unidos. Especificidades nacionais ou locais eram abordadas apenas para o clima, os financiamentos, a qualificação de restauradores, entre outras.

Curiosamente, foi no exato momento em que a museologia se tornava uma disciplina reconhecida e ensinada, e quando a cooperação internacional atingia a sua maior eficácia, que surgiu uma contestação no mundo dos museus. Os frutos culturais da descolonização, o movimento dos países não alinhados, o espírito de 1968 na juventude dos países ricos passou a questionar os princípios supostamente intangíveis e universais da museologia oficial. Em todos os países, a vontade de valorizar o património e a memória levou à multiplicação de pequenos museus, sejam locais (ligados a um território), ou temáticos (ligados a uma atividade, uma profissão), ou mesmo ideológicos (trabalho , o sagrado), que não se satisfaziam com  os padrões dos grandes museus e além disso não tinha nem os meios nem as pretensões. Vimos o surgimento no terreno, em reuniões nacionais ou internacionais, de tentativas de formular novos princípios, umas vezes mais gerais (como a Declaração de Santiago) ou mais precisos na forma de experiências muito localizadas e geralmente de sentido comunitário.

Surgiram então redes mais ou menos formais, em particular na América Latina e no sul da Europa, mas também no Canadá, Suécia, Japão ... Este movimento foi denominado “Nova Museologia” que se dotou de uma estrutura internacional, o MINOM, que se juntou ao ICOM sem que este último modificasse significativamente suas doutrinas e organização tradicionais, que permaneceram em grande parte vinculadas aos grandes museus ricos em coleções e atividades de prestígio, mesmo quando o número de países representados e museus aderentes de todos os tamanhos, eram cada vez em maior número.

Durante este tempo, ou seja, nos últimos trinta anos do século XX, a nova museologia manteve-se um movimento essencialmente empírico, cujo conteúdo se expressava através de declarações (Santiago, Quebeque, Oaxtepec), por encontros nacionais ou internacionais (workshops do MINOM, encontros no Brasil, Canadá, Suécia, conferência da Unesco em Caracas), por meio de artigos ou alguns livros e por meio de um novo vocabulário que apareceu em alguns países - ecomuseu, museu comunitário - e formulações locais. O primeiro teórico da nova museologia e ecomuseus, o quebequense Pierre Mayrand, partiu de uma experiência de campo na Haute Beauce e em Portugal, e do seu ativismo nos Fóruns Sociais Mundiais, para propor definições para os principais termo empregados em publicações e em reuniões entre profissionais. Foi ainda mais longe ao propor a ideia de uma “altermuseologia” comprometida, que rompeu decididamente com o discurso do MINOM.

De um modo geral, permanecíamos no quadro de um “movimento”, nascido espontaneamente no início dos anos 1970, resultante de um acúmulo de experiências pontuais, inventando respostas às necessidades locais, buscando alternativas aos sistemas existentes de funcionamento dos museus e da gestão do patrimônio. Às vezes, juntava-se uma vontade política, como a criação administrativa de ecomuseus nos parques naturais franceses, ou como “efeito de moda” quando os governantes locais eleitos, procuravam dotar o seu território com ferramentas mais ou menos “inovadoras” para o turismo.

No entanto, notamos duas políticas, muito distantes e muito distintas entre si, que tenderiam - e continuam ainda a caminhar nessa direção

- a dar profundidade e real coerência à construção de novas fórmulas institucionais:

- museus comunitários no México e na América Latina, que são projetos políticos liderados por comunidades locais, muitas vezes indígenas, que reivindicam uma espécie de autogestão social e cultural, mas também memorial e patrimonial;

- os ecomuseus e suas redes na Itália, reconhecidos por legislações regionais e desenvolvendo “comunidades de prática” que incluem conhecimentos teóricos significativos, cada vez mais ligados a grupos de outros países ou continentes e favorecendo uma plataforma internacional de trocas.

Mas tudo isto era pouco visível a nível internacional, até porque o ICOM, ligado como a UNESCO à museologia / museografia tradicional e a uma concepção de museu de origem essencialmente euro-norte- americana, apesar de afirmações relativamente progressistas, nunca antes tinha reconhecido a existência de museus resultantes de dinâmicas comunitárias e não baseadas na conservação e na apresentação de uma coleção, no acolhimento de públicos e na  educação escolar e extracurricular.

O trabalho de reflexão e publicação realizado, desde à quase cinquenta anos, pelo comitê internacional do ICOM para a museologia (ICOFOM), com base no trabalho de grandes museólogos e de experiências de campo, não afetou seriamente a museologia internacional, que se manteve na sua imensa maioria muito clássica, poderíamos até dizer, sem brincadeira, conservadora.

Durante esse tempo, ou seja, a partir da década de 1990 e especialmente a partir dos anos 2000, em Portugal e depois no Brasil, em paralelo com um forte desenvolvimento de museus locais,  comunitários,  muitas vezes chamados de ecomuseus, nasceu progressivamente  uma nova disciplina museológica, sob o nome da museologia social, depois sociomuseologia, apoiada por uma universidade criativa, a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT, Lisboa) e numa coleção de publicações, Cadernos de sociomuseologia,

Os Cadernos surgiram em primeiro lugar, em 1993, e já o primeiro artigo, de Mario Moutinho, intitulava-se: “Sobre o Conceito de Museologia Social”. Em 1998, foi criado e integrado na ULHT um conjunto de formações e investigação em sociomuseologia, de mestrado e de doutoramento, sob a direção do mesmo Mário Moutinho. Mais recentemente, a reedição dos Cadernos entre 1993 e 2012 (2016), uma balanço do ensino e da investigação em sociomuseologia desde 1991 (2018), a publicação de Introdução à Sociomuseologia, sob a direção de Judite Primo (2020) e finalmente este livro Teoria e prática da Sociomuseologia que constitui uma síntese de trinta anos de trabalho, realizado principalmente por profissionais e investigadores lusófonos, portugueses e brasileiros, mas sempre em contacto, colaboração e confronto com colegas de outros países e de outras línguas.

Estamos perante uma disciplina académica confirmada e reconhecida, com as suas três dimensões de investigação e experimentação, ensino e publicação, independente mas solidária com a corrente histórica da museologia e das suas instituições. Este livro marca um momento importante de um processo iniciado na década de 1960, acelerado no início dos anos 1970, seguido de um longo amadurecimento e que agora se pode abrir, não apenas para a criação de outros polos ou centros universitários  dedicados especificamente à sociomuseologia e suas diversas vertentes, mas também à integração desta disciplina em todo o ensino que envolva o património, a ação cultural, a educação, a comunicação e o desenvolvimento.

Porque se é necessário que os profissionais de museus sejam formados e especializados nas várias funções próprias das suas instituições e nas disciplinas académicas relacionadas com o património e as coleções pelas quais são responsáveis, também devem compreender e utilizar outros conhecimentos úteis para toda a sociedade, de forma a melhor utilizar a ferramenta específica que é o museu. Da mesma forma, é necessário que os atores da vida social, cultural, política, econômica e ecológica estejam cientes da função ou funções que o museu pode desempenhar junto com outras instituições públicas do território.

Ainda que eu não seja profissional de museus, nem mesmo académico, parece-me que este campo da sociomuseologia, do qual este livro e todas as obras que o alimentaram mostram a coerência e a riqueza de perspetivas, responde bem às expectativas daqueles que buscam atualmente, em todos os países, dar sentido e utilidade social ao museu do século XXI. É um novo trampolim para a investigação, para a formação e para a ação, que poderá muito rapidamente, espero, ultrapassar os limites do mundo lusófono e estender-se, em particular, a muitos países que procuram ativamente descolonizar os seus museus e, em geral, as suas políticas patrimoniais.

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